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Por Lucía Wasserman

 O calendario judaico se repete de ano em ano, em um ciclo sem fim, e no mes de Setembro de 2021, vivencio a véspera de Yom Kipur. 

Sentada em meu terraço observo a rua tranquila sem pedestres, veiculos, não há movimento. 

Um fim de tarde quase outonal. Os calores e a humidade do extenso verão se apaziguaram, os hatzavim brancos e esguios se anunciaram, e uma brisa leve e amena convida a desfrutar de todo o verde que me cerca, sem a companhia dos habituais jornais de véspera de Festas. 

Um momento e um dia para introspecção. 

Logo mais nas sinagogas cantarão o» Kol Nidre», e aquela  atmosfera mistica do dia do Perdão se fará sentir. 

Como todos os anos, o sol nesta época se põe mais cedo, é mais nítido, é uma bola de fogo que se esconde atrás do mar. Ha anos atrás eu o observava deste mesmo terraço, hoje os prédios e as construções recentes o encobrem. 

Então, na quase noite as familias e as crianças se sentirão livres e caminharão pelas ruas, e se ouvirão as vozes e os gritos dos pequenos montados em suas bicicletas e patinetes subindo e descendo a ladeira proxima. 

Banhei-me, vesti-me de branco, perfumei-me, para de alguma maneira sentir-me identificada com a data, e com aqueles que se apressam e se dirigem a sinagoga vizinha, vestidos com alvas camisas brancas, kipa e seu talit em mãos. 

Não irei a sinagoga, canto para mim o kol nidre, e não jejuarei. À minha idade estou dispensada. Mas de alguma maneira dedicarei a mim momentos de introspecção. 

Peço perdão àquele a quem fiz mal. Pode e deve ter acontecido… desconheço sua identidade. 

Recordo Adelia amiga de anos. Foi enterrada ontem, véspera de Yom Kipur, no vizinho cemiterio de Kiriat Shaul. Não será inscrita no Livro de  Vida do novo ano judaico.  Ainda  sinto-me profundamente  impactada com  seu falecimento. 

Adélia, judia gaucha brasileira, fez Aliah a Israel em 1970, com sua numerosa familia e vivia em Rehovot, onde o marido trabalhava no Instituto Weizman como cientista. 

Ela me procurou pela primeira vez, apos o falecimento do esposo, para que eu tratasse como advogada e notária do seu inventário. Posteriormente, na sua condição de viuva, vinha cada ano a meu escritorio, assinar seu atestado de vida, e uma procuração que lhe dava o direito de receber aposentadoria mensal do falecido marido. 

Uma figura peculiar, baixinha e gordinha de cabelos brancos encaracolados e pele rosada, de olhos vivos e travessos, chegava ao meu escritorio usando luvas e se apoiando numa bengalinha preta, sempre elegantemente vestida. Alegre e descontraida, sorridente e jovial, transmitia otimismo e emanava aquele cheiro de perfume antigo utilizado por nossas mães e avos. 

Ela dizia «Faço jus a pensão que recebo do governo brasileiro, é um reconhecimento às inumeras patentes que meu ex-marido criou e deixou de herança   aos brasileiros…» 

E entre o chá ou cafezinho falava e contava, dos filhos, noras e netos, e sua recente adaptação a nova moradia numa casa  para moradores da terceira idade na cidade de Rishon le Tzion. 

«Quero lhe contar um segredo,» dizia, e com um sorriso maroto falava baixinho aproximando-se a mim: «Onde vivo, o número de viuvas é o dobro do numero dos viuvos ou casais idosos, e o mulherio me evita… alguem espalhou o boato de que estou a la procura de caçar um marido e sou uma ameaça a estabilidade dos casais…» 

 Adelia era o tipo da cliente ideal. A cada visita depois de assinar os documentos, pagava sem discutir, e me presenteava com uma caixa de chocolates. Perante minha insistencia de que não era necessário, dizia: 

-E porque não? Cada vez que nos encontramos significa que ganhei mais um ano de vida. Temos realmente motivo para comemorar! 

Com o passar dos anos suas visitas foram se tornando mais raras acompanhadas de um dos filhos, e em seguida mais dependente, por uma cuidadora filipina. Nas ultimas vezes que nos encontramos devido ao seu estado de saúde, fui  a sua morada colher pessoalmente sua assinatura. 

Dias atrás fui chamada com urgencia pelo filho de Adelia, dizendo que sua mãe pedia minha presença, pois tinha intenção de modificar seu testamento. 

Por uma ou outra circunstancia, pelo acumulo de trabalho e um passeio turistico a Jerusalem, fui adiando minha visita, alegando a «meia verdade» de que devido a Corona, minha entrada na casa de terceira idade estava proibida, e sugeri que aguardassemos ate Sucot, quando provavelmente as medidas seriam mais liberais,  devido a Festa e os feriados. 

Dois dias antes de Yom Kipur estava em meu escritorio quando fui surprendida pelo telefonema de seu filho. Ele anunciava o falecimento repentino de Adelia. 

Sobre a cova recem coberta de terra e fresca e vermelha em Kiriat Shaul, depositei flores e varias pedrinhas que recolhi enquanto acompanhava à sua derradeira  morada. Um remorso me consumia. 

De Rishon le Tzion ela se «mudou» para o bairro vizinho próximo. Sua ultima vontade deixará de ser cumprida.  Alguem perdeu, alguem lucrou. Sinto um grande desleixo profissional de minha parte. 

E agora já é noite fechada, eu olho as estrelas, penso em Adelia e lhe peço Perdão!

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